O Brasil tem uma tradição de governos de corte autoritário, e uma progressiva adoção de aspectos liberais no campo econômico, refletindo uma convivência entre autoritarismo político e liberalismo econômico. Neste texto analisamos o contexto político e econômico das fases imperial e republicana, mostrando que as ideias liberais vem sendo progressivamente adotadas no Brasil, com uma descontinuidade marcante no início do século XXI, com inflexão autoritária na economia e na política. A partir de 2016, porém, retoma-se o processo liberalização político e econômico.
Período colonial: autoritarismo político e econômico
O período colonial brasileiro é marcado por autoritarismo econômico e político. Os navegadores que chegaram ao Brasil eram financiados pelos governos absolutistas europeus. No campo econômico, a escravidão um aspecto central do modelo de produção - o que era contrário aos ideais do liberalismo nascente europeu. Ademais, o “modelo” de escravidão era diferenciado, já que os europeus se escravizavam entre si, mas no Brasil introduziu-se o sistema de escravidão baseado em raça.
O sociólogo peruano Aníbal Quijano aponta em “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”, que a modernidade, de fato, começa com a colonização da América, e que essa colonização é baseada em aspectos fenotípicos - o racismo. O racismo é, então, a característica fundamental do modo de produção capitalista na América.
Período imperial: liberalização econômica e política controlada
O período imperial, sobretudo na fase pós-independência, o pensamento liberal, ou pró-liberal europeu começa a se fazer presente no Brasil. A partir de 1931, do período regencial até a República, observa-se uma prevalência de um liberalismo conservador, com a adoção de uma monarquia constitucional.
Entretanto, é um liberalismo mitigado, adaptado à realidade brasileira, surgido da elite colonial que teve condições de acompanhar os eventos do Iluminismo na Europa, mas, por estarem atrelados, até do ponto de vista familiar, à elite agro-exportadora e escravocrata, não teve potência para romper as amarras econômicas e políticas que ocorreram nos EUA e Europa.
O liberalismo no Brasil foi se disseminando dentro da oligarquia, sem participação popular - como acontecia na Europa, e consistia basicamente em imitar o federalismo dos EUA, com progressiva participação das elites provinciais no poder, sobretudo a partir de 1831. A partir de 1939, quando D. Pedro II assume, amplia-se a participação das elites, mas o Rio de Janeiro continua centro do sistema político.
República no século XX: ampliação dos limites da oligarquia política
Economicamente o Brasil mantém seu contorno produtivo primário (agrícola) até o começo dos anos 30 do século XX, já no período republicano. No início do século XX, o Estado promove intervenções no mercado de café, criando estoques estabilizadores para manter preços elevados e rentabilidade da produção. A partir dos anos 30 inicia-se o processo de industrialização, mas com grande prevalência de importação - sobretudo de bens de capital. Apenas no final do século XX essa realidade começa a mudar, com redução da defasagem na tecnologia.
Vargas: impulso autoritário político e econômico pela industrialização
A partir de 1930 há um impulso por industrialização, mas novamente em um processo conduzido pelo Estado. O Governo Federal se institucionaliza e profissionaliza, com a criação de autarquias, estatais de petróleo (Petrobrás) e de grandes indústrias de base (siderurgia e mineração, como a Vale do Rio Doce).
1964 a 1985: regime militar - liberalismo econômico se amplia
A partir de 1964 o liberalismo econômico se amplia nos governos militares. Nesse período o Brasil conviveu com um regime político que alterou entre flexibilizações e fases mais repressivas no processo político, com uma política econômica liberal. Os presidentes militares tinham viés autoritário, mas os ministros da área econômica - Economia, Fazenda e Planejamento - eram economistas liberais, como Roberto Campos, Mário Henrique Simonsen e Delfim Neto. Novamente prevalece a convivência entre o autoritarismo político com liberalismo econômico.
Redemocratização: liberalismo político e econômico ampliado
No período de democratização pós-1985 há a incorporação da ideologia liberal na organização política brasileira, sendo que a Constituição Federal de 1988 é apontada como a primeira que adota de forma mais extensiva os princípios do Iluminismo.
Em 1989, vence a eleição para Presidente da República, Fernando Collor de Mello, com uma plataforma liberal na economia, mas apoiado por um partido pequeno, o PRM, que não tinha orientação liberal. Apesar das medidas de intervenção heterodoxas, como o sequestro da poupança, o governo Collor adotou medidas de liberalização da economia - fim das restrições de importações, fim da reserva de mercado para produtos eletrônicos e de informática para empresas brasileiras. Em 1992, Collor sofre um impeachment, e assume Itamar Franco, dando sequência à agenda liberalizante, promovendo um ajuste de contas públicas e privatização de estatais como a EMBRAER.
Em 1995, chega à Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso, que acelera a implantação das ideias liberais tanto do ponto de vista político quanto econômico. No campo político há uma nova legislação sobre partidos políticos. Conforme Pedro Floriano Ribeiro, em “Financiamento partidário no Brasil: propondo uma nova agenda de pesquisas”, com a aprovação da Lei nº 9.096/95 observa-se aspectos de liberalismo político, como a autonomia partidária e flexibilização de regras de distribuição de recursos dentro dos partidos, mas, ao mesmo tempo, ampliou-se muito os recursos públicos direcionados às legendas - o que pode ser considerado um aspecto autoritário.
Segundo Ribeiro, houve um crescimento de mais de 20 vezes em termos de recursos enviados às legendas entre 1995 e 1996, tendo atingido R$ 170 milhões em 2008. Além disso, passou-se a permitir doações de empresas privadas, consubstanciando uma estrutura mista de financiamento dos partidos políticos, com viés liberal.
Na economia, Fernando Henrique adotou uma abordagem fortemente liberal, adotando um grande programa de privatização de estatais, e redução da intervenção do Estado na Economia. No campo macroeconômico, a partir de 1999 há a adoção de um regime de câmbio flutuante, e sistemas de metas de inflação - com ampliação de transparência nas decisões de política monetária, o que também são medidas liberais.
Início do século XXI: esquerda e inflexão autoritária na Política e na Economia
A partir de 2003, com a chegada dos presidentes Lula e Dilma, o Brasil observa uma inflexão autoritária tanto na política quanto na economia. Na política, o viés autoritário ficou marcado por mecanismos como “Mensalão” (compra de votos no Parlamento por meio de desvios de recursos públicos); loteamento de ministérios e estatais para partidos em troca de apoio no Congresso; e Petrolão - desvio de recursos públicos de estatais para financiamento de campanhas políticas dos partidos que controlavam o Poder Executivo desde 2003.
No campo econômico também, entre 2003 e 2016, houve uma progressiva erosão dos aspectos liberais na economia. A intervenção do Estado na economia se aprofundou, estatais começaram a ser criadas, e passou a se adotar a política de empresas “campeãs nacionais”, por meio do qual o governo “escolhia” empresas para receber empréstimos a juros subsidiados do BNDES - o caso mais emblemático é o do frigorífico JBS, que se tornou multinacional com financiamento público.
No setor de petróleo, o governo exigiu que a Petrobrás financiasse o ressurgimento do setor naval no Brasil. A estatal começou a se endividar fortemente para compra plataformas muito mais caras de estaleiros brasileiros, o que culminou com a virtual “quebra” da empresa no governo Dilma.
Mais medidas anti-liberais e autoritárias entre 2003 e 2016 foram adotadas: aumento exponencial dos gastos públicos; controle de preços de gasolina e diesel por parte para Petrobrás para controlar a inflação; aumento do protecionismo da indústria automotiva nacional; imposição de barreiras à importação; e fim do acordo de livre comércio com o México. A partir de 2011, a intervenção do Estado na economia de acelerou: tentativa (fracassada) de estatização do setor elétrico; controle de preços de tarifas; fim da autonomia operacional do Banco Central - com intervenção direta do Poder Executivo no nível de taxas de juros.
Ao mesmo tempo, com a adoção das “pedaladas fiscais” (desvio de recursos de bancos públicos para financiar o governo), observou-se um aumento ainda mais forte do autoritarismo político, com a adoção de mecanismos antidemocráticos e antiliberais de financiamento político de empresas privadas por meio de contratos fraudulentos com o setor público, direcionando recursos para empresas privadas, as quais “retornavam” por meio de financiamento de campanhas políticas dos partidos que dominavam o Poder Executivo.
Assim, entre 2003 e 2016 observou-se uma aceleração de práticas autoritárias no campo político, e forte redução do liberalismo econômico, já que, nesse período, o Estado passou a intervir fortemente na economia. Com o aumento exponencial da corrupção, e o colapso econômico produzido por tais políticas, o governo Dilma chega ao fim em 2016.
2016: retorno progressivo do liberalismo econômico e político
Em 2016 chega ao poder o jurista Michel Temer, o qual inicia um processo de liberalização na economia, e também um retorno à normalidade democrática, com maior proeminência política e institucional do Parlamento. Posteriormente, com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, observa-se esse processo se acelera. No campo político, sob a égide e Bolsonaro, o liberalismo ganha novo impulso: o Parlamento passou a ter maior autonomia, e o Poder Executivo foi blindado de interferência com a nomeação de ministros “técnicos” na Economia, Justiça, Saúde e nos setores de Infra-Estrutura (infra-estrutura física, telecomunicações e energia).
Já no campo econômico, o Banco Central voltou a ter autonomia operacional, e há uma agressiva agenda liberalizante em curso, com privatizações, redução da intervenção do Estado na economia, democratização nas relações de trabalho, maior equidade entre servidores públicos e trabalhadores da iniciativa privada.
O Brasil tem um histórico de convivência entre autoritarismo político e liberalismo econômico durante todo o século XX. O início do século XXI, a partir de 2003, com a chegada da esquerda ao poder, observa-se uma inflexão autoritária tanto na política quando na economia. A partir de 2016, porém, voltou a vigorar com mais proeminência os ideias liberais na economia.
Esse processo se acentua em 2019, com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência da República, com aceleração do processo de liberalização e também uma ampliação do liberalismo político, com menor intervenção do Executivo sobre o Parlamento, fim de indicações políticas para o Executivo em troca de votos, e também fim de direcionamento de recursos públicos para grupos dominantes de imprensa em troca de apoio midiático. Dessa forma, a partir de 2019, o Brasil vive uma fase de maior efervescência do liberalismo tanto no âmbito político (democracia) quanto econômico (capitalismo).
Esse processo se acentua em 2019, com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência da República, com aceleração do processo de liberalização e também uma ampliação do liberalismo político, com menor intervenção do Executivo sobre o Parlamento, fim de indicações políticas para o Executivo em troca de votos, e também fim de direcionamento de recursos públicos para grupos dominantes de imprensa em troca de apoio midiático. Dessa forma, a partir de 2019, o Brasil vive uma fase de maior efervescência do liberalismo tanto no âmbito político (democracia) quanto econômico (capitalismo).
Referências bibliográficas
RIBEIRO, Pedro Floriano. “Financiamento partidário no Brasil: propondo uma nova agenda de pesquisas”. Sociedade e Cultura.
QUIJANO, Aquino. “Colonialidade do poder: eurocentrismo e América Latina”.
DOLHNIKOFF, Miriam. "Projetos Liberais". In: GRINBERQ Keila e SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial. Vol.III. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: comentários que contenham palavras de baixo calão (palavrões) ou conteúdo ofensivo, racista, homofóbico ou de teor neonazista ou fascista (e outras aberrações do tipo) serão apagados sem prévio aviso.